segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O miúdo que um dia deixou de o ser

Vou contar a história de um miúdo que eu conheci.  Um miúdo que teve uma infância tão feliz, que uma coisa que sempre o atormentou foi o medo de crescer.

Um miúdo que jogava ao berlinde, ao pião, adorava subir às árvores e fazer delas o seu Castelo. Apaixonado pela sua bicicleta maior do que ele, mas que dominava como ninguém.

Não havia nada que ele tivesse medo, exceptuando palhaços.  Tinha pavor deles, sem nunca perceber a razão de tal temor.

Inevitavelmente o miúdo foi crescendo, deixando de lado a sua inocência e tornando-se cada vez mais fechado nele mesmo. Foi algo demasiado espontâneo para que ele tivesse sequer noção dessa transformação.

Um dia esse miúdo descobriu com um amigo que existiam umas palhinhas a que chamavam panfletos, que se vendiam num café perto de casa e que continham um pó castanho que se fumava numa prata.

Levados pela curiosidade, lá foram os dois comprar um desses panfletos. Foram para casa de um deles, aquele que já tinha visto alguem fumar esse pó e fizeram-no. Sabia mal e fazia-os vomitar. Apesar disso aquilo tinha qualquer coisa de reconfortante. De repente o miúdo voltou a ser miúdo e os medos que entretanto ele vinha sentido à medida que ia crescendo, desapareceram.

Descobriu ali uma coisa que fazia com que não sentisse e isso dava-lhe uma paz tão intensa que acabara de descobrir a forma de não crescer.

O miúdo ainda não sabia, mas acabara de fumar heroína.  Durante algum tempo nada mais tinha interesse. Ele só precisava daquilo para se sentir bem.

Entretanto começaram a aparecer umas dores de manhã,  uma ansiedade crescente que só passava quando ele fumava aquele pó mágico. A liberdade que ele sentia com aquilo começou a transformar-se numa prisão. Numa necessidade cada  cada vez mais crescente.

O céu começou a desabar sobre ele e a descida ao inferno a começar.  Aquilo era tão caro e as desculpas para arranjar dinheiro começavam-Se a esgotar.


Felizmente para ele começou a trabalhar numa empresa que lhe pagava imenso dinheiro. Não precisava de roubar, não precisava de esquemas.

Andou assim mais quatro anos, a viver exclusivamente para poder consumir, a consumir para poder conseguir trabalhar. Aos pais inventava que ia de férias e ia para a barraca de um dealer  e passava lá dias a fio a consumir aquela droga que cada vez o consumia mais.

Nos últimos tempos quando injectava uma seringa no braço chorava. Chorava porque queria parar e não conseguia. Já não havia magia naquilo. Apenas degradação física e mental.

Até que um dia e em desespero foi pedir ajuda aos seus pais, que desconheciam o estado em que o filho estava. Sabiam que ele fumava uns charros,  bebia uns copos, mas ele estava tão distante deles que não faziam a minima ideia do estado em que o menino deles estava.

Os seus pais disseram-lhe que claro que queriam ajudar, mas não faziam a mínima ideia de como o fazer.  A vontade dele parar era tanta, que ele os orientou e lhes disse como o poderiam ajudar. Foi um processo extremamente difícil para todos,  de repente era como se estivessem a conhecer pela primeira vez.

Foi a maior manifestação de amor, entrega, confiança e ausência de julgamento que assisti até hoje.

O miúdo há 20 anos que não usa drogas, nem álcool, mas o processo foi complicado ao ponto de ele quase ter voltado a aprender a viver . Lidar com as outras pessoas, voltar a ter auto-estima,  deixar de se sentir inseguro e sobretudo aprender a lidar com aquilo que sentia. Algo que ele não precisou durante anos.

Hoje o melhor amigo deste miúdo está a passar por esta merda toda mais uma vez e o miúdo sente uma impotência e uma tristeza enorme porque não consegue que ele tenha vontade de parar.




1 comentário:

  1. Paper Cut, sei tão bem daquilo que falas. Infelizmente não é para quem precisa, é para quem quer. Se tiveres força não desistas do teu amigo, se isso se tornar demasiado penoso para ti sugiro-te que te afastes. Mais 24 para ti ;)

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