terça-feira, 25 de outubro de 2016

A angústia que não queria companhia

Tinha 41 anos, vivia com a minha ex-mulher e tinha um filho de três anos. Hoje à distância não me consigo lembrar se era feliz, ou sequer se conseguia sentir o que quer que fosse. Ansiava pelo fim do dia para estar com o meu filho, isso lembro-me bem que era a única coisa que me provocava estímulos; estar com o meu Kukas. Sentia-me preso a algo do qual eu não me conseguia libertar. Não sentia Amor, não sentia Paixão, não sentia ódio. Vivia numa letargia permanente e a existência do Kukas já não era suficiente para a minha vida se tornar no mínimo suportável. Não sei também se ansiava por mais do que aquilo que tinha. Como aquelas pessoas que não sentem falta daquilo que não conhecem.

Naquele dia fui à pastelaria onde sempre vou beber café de manhã. Quando entrei ela estava sentada numa mesa, olhei para ela e o ar angustiado com que estava chamou-me a atenção. Nunca havia falado com ela, pedi para me sentar e perguntei-lhe se estava tudo bem, se precisava de algo. Olhou para mim com um ar evasivo e vazio e disse-me que estava tudo bem. Não me convenceu, voltei a questionar se estava bem e ela voltou a dizer que sim e percebi pela sua cara que a minha presença a estava a incomodar.

A miúda estava a trabalhar na porta ao lado da minha há cerca de um ano e eu apesar de já a ter visto várias vezes, nunca havia reparado nela. Pensando melhor, já tinha reparado naquela miúda que todos os dias passava na minha Rua, com um andar apressado e desajeitado e sempre de phones nos ouvidos e que perante aquela visão me fazia sempre esboçar um sorriso. Porém, até aquela manhã no café, nunca havia reparado na miúda do andar desengonçado, desta forma tão cativante.

Quis saber mais sobre aquela pessoa que me despertou de repente tanto mistério e interesse.
Fui escrutinar as redes sociais e lá a encontrei. Um dos seus filmes favoritos, era também o meu. As suas músicas eram também as minhas. A forma como escrevia tocava-me de uma forma que de repente comecei a sentir coisas que há muito não sentia. Tornei-me compulsivo em querer conhecer cada vez mais aquela miúda de ar angustiado. Havia uma certa nostalgia nela que me fascinava. Pedi-lhe amizade numa das redes sociais e só me aceitou algum tempo depois; demasiado tempo para mim na altura.

Começámos finalmente a falar. A cada mensagem trocada, o fascínio por ela aumentava. Descobri finalmente porque naquele dia na pastelaria estava com aquele ar tão angustiado; estava com uma crise de vesícula, cheia de dores e sem paciência para um tipo chato que só lhe fazia perguntas sobre o seu aparente estado de espírito de tristeza e angústia.

A partir daquela manhã, o meu estado vegetativo começou lentamente a desaparecer. De repente um turbilhão de sentimentos inundou-me. Confesso que por mais gratificante que fosse, era-me igualmente muito difícil lidar com tudo aquilo que de repente começava a despertar em mim. Hoje sei que fui salvo por aquela miúda, a minha miúda. Era um ser desalinhado que graças a uma pessoa completamente improvável,  comecei a querer mais, a desejar um caminho que me levasse de novo à vida, que me fizesse chorar e rir, que me levasse a arriscar sem medo de cair.

Voltarei noutro dia à miúda do andar desajeitado, tenho tanto a dizer sobre ela e sobre a forma como ela me salvou de mim.

2 comentários:

  1. Fantástico. Uma lufada de ar fresco na blogosfera. Parabéns Papercut.

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  2. Asas do Desejo, um dos filmes da minha vida.

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